Fabiana Figueiredo
@FabianaFgrd
Houve uma época em que eu pensava que as
pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te
amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa
intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança
de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a ideia foi
abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é
tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e,
quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer
perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir
essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não
merece punição alguma.
Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos
imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical —
falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa
ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do
amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às
vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de
fogo.
O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição,
antiburguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o
amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um
contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem a traídas uma pela
outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma coisa simples, mas não é,
pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens
e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre
beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha
sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a
ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor
sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos
trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar
filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua
própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não
radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável
esperança.
Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de
lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela
possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e
brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque,
à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria
se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À
sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas
estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação
bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas
dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventura sonhada, o amor
louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar
adultério - o assim chamado -, que é quase sempre decepcionante, condenado,
amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da
vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se
ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com
fritas.
Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e
pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um
mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção
suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes.
Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é
suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar
condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela
de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa
desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe
como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não
querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade,
como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as
mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio
se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.
A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga
banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a
decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura
que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até
o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado,
trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz
que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se
assusta: mas então está tudo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a
mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como
se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é
impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico
Buarque: sofrendo normalmente.
Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda-roupa, a
cômoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tudo impregnado da ausência
do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere,
inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali
esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o
trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia,
tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do
jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus,
carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades.
E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como
um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo
contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar-se? Mais dia
menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida
vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a
pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como
outra qualquer.
E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer
que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só
existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando
bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas... Na cama
era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase
morro!...
Isso dizes agora, comendo um
bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com
a vida. Ou não.
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